Reality show

RPDR: Sai hétero é o caralho. Vem, hétero

servido por: Erick Heras

RPDR não significa rapadura, mas, sim, RuPaul’s Drag Race. E eu sei que muita gente acha (eu achava inclusive) que devido a temática – drag queens –, este seria um programa exclusivamente para o público gay. É um grande erro, uma vez que o programa, independente das muitas linhas que ele abrange, nada tem a ver com sexualidade. OK, talvez apenas no fato de ser uma competição de homens com peruca. Mas RuPaul’s Drag Race prova, ao longo de oito temporadas regulares, duas All Star e de alguns spin-off, que é um programa cuja proposta está além de uma competição, um reality show ou um mero show de TV. É um programa que trata sobre humanidade, empatia, valores sociais e pessoais.

Este mês estreia a nona temporada e eu vou comentar os episódios aqui no SHOTS. Caso você tenha curiosidade sobre o programa e queira começar a assistir, sugiro apenas começar desta nova temporada mesmo, dá para deixar a maratona para depois.

Abaixo, vou fazer um resumão de cada temporada, mas não do ponto de vista da competição e, sim, dos valores que aprendi a exercitar em cada uma.

Importante dizer que: cada vez que eu disser “vilã”, trata-se da personagem que a edição colocou nesta condição para dar tempero ao programa, nada mais, pois todo mundo a gente ama.

1ª temporada

Em uma das provas, as participantes têm que criar uma propaganda de 30 segundos, de uma marca de maquiagem, que tem uma linha cujo lucro é revertido para fundações que lidam com a questão do HIV e da AIDS. A “então” vilã da temporada tem o que parece ser um acesso de estrelismo, torna todo o tema um drama muito grande em torno de si, por ter um amigo muito próximo que tem o vírus do HIV. Ela faz uma propaganda péssima, o textão que ela preparou não cabe nos 30 segundos, ela tem mais um acesso, larga a gravação no meio e se recolhe aos bastidores.

A vencedora da prova por sua vez, é uma da drag super carismática, uma pequena, alegre e querida personagem chamada Ongina, que decide fazer uma propaganda totalmente alto astral, celebrando a vida. No texto, ela diz que a vida deve ser celebrada e comemorada a cada dia, que é disso que se trata viver, quando, apesar de qualquer contratempo ou dificuldade, nós conseguimos chegar a mais um dia.

No palco, ao ser anunciada como vencedora da prova por RuPaul, a Ongina, que sempre vimos sorrindo, divertida, literalmente desaba no chão, chorando, dizendo que é extremamente importante para ela ter ganhado aquela prova, pois ela convive com o vírus do HIV há dois anos, não tinha dito para os pais ainda e acredita muito que é importante celebrar a vida.

Aqui tem este trecho, cata o lenço:

2ª temporada

Nesta temporada, descobrimos o real significado de “bitch” em sua personificação chamada Tyra Sanches e aprendemos, episódio a episódio, a lidar com ela.

Esta queen é insuportavelmente talentosa, sabe disso e, até por se tratar de uma competição, acaba irritando as demais participantes. Ela, por exemplo, vai dormir enquanto seu grupo ensaia a coreografia para uma prova, por julgar já ter aprendido e não precisar mais ensaiar.

Na hora da apresentação, ela se dá mal e nos sentimos vingados? Não, pelo contrário, ela manda super bem.

Ela é vilã, todos sabem; ela é boa demais, todos sabem; e a participação de uma pessoa assim, no programa, nos dá uma lição valiosíssima para a vida: segura seus julgamento, parça!

Com o passar dos episódios, a edição vai nos deixando descobrir que Tyra, como todo ser humano, é um ser com diversas facetas. Ela tem, sim, coração tal qual o homem de lata, oh Mágico de Oz! Nos faz sentir compaixão quando, no workroom, ela, neste caso ele, o dono da personagem Tyra, chamado James William, conta sobre a relação com o filhinho, ou quando conta como foi morar na rua e as dificuldades que teve até chegar no programa.

Ela é uma pessoa fofa depois disso e caiu em redenção? Absolutamente não, isso não é novela da Globo. Pós-programa continuou causando bastante por aí, isso, como o ser humano que ela é.

3ª temporada

Stacy Layne Matthews é, provavelmente, a maior “country girl” da história do programa. Ela tem um sotaque puxado, é naturalmente tímida e simplona, conta que, de onde veio – um lugarejo chamado Back Swamp/NC –, tem muita plantação de milho (deve ser um lugar parecido com nossas cidades agrícolas do interior do Paraná, talvez). Por que isso é relevante? Imagine você ser um cara bastante gordo, do interiorzão, gay, como se a vida já não fosse difícil o suficiente, um dia resolver colocar um vestido e se jogar numa arte marginal como esta? Tem que ter bolas. Não à toa, foi parar na TV e, com um jeito manso, deu um tapa com luva de pelica na cara de muita gente das capitais.

4ª temporada

Esta temporada foi, definitivamente, uma divisora de águas para o programa. Inclusive, sempre sugiro para quem vai começar, que comece por ela. Os personagens escolhidos são incríveis, a edição está melhor. Esta temporada também marca o início das frases de efeito, essas que vemos em memes. Antes, elas até existiam, mas eram colhidas geralmente do Untucked, que é um programa paralelo, que mostra os bastidores, enquanto RuPaul toma a decisão e conversa com os jurados no palco.

As “big girls” estão representadas desde a primeira temporada, mas – nesta – o assunto fica mais latente.

Se neste ponto do programa, você ainda não aprendeu e reconsiderou seu julgamento geralmente baseado na estética e no que acha que ela representa, é muito possível que, com os personagens desta temporada, você não consiga seguir em frente sem se reconstruir. A temporada toda trata muito sobre este tipo de preconceito, a vilã é uma “pageant queen”, drag queen de concurso de beleza, muito ligada a estética e que se frustra, episódio a episódio, quando a rival direta dela (que ela mesma elegeu), uma drag de estética dark (monstros, freak show, etc.), vai vencendo os desafios.

Mas este conflito não é o único e destaco duas situações:

Logo no primeiro episódio, ocorre uma prova de confecção de roupa para a passarela, alta costura pós-apocalíptica. Jiggly Caliente é uma drag que parece ser uma bagunça. Fisicamente, ela é fora de qualquer padrão estético; tem problemas nos dentes; é “big girl”, mas totalmente desproporcional; tem uma barriga realmente grande. Na execução da prova, ela mostra ter muita insegurança, problemas de autoestima, pouco (ou nenhum) conhecimento de costura, enfim, uma bagunça. Ao entrar na passarela, ela está definitivamente com a pior roupa. É um monte de pedaço de tecido, plástico, objetos pendurados pelo corpo e caindo pela passarela. Naturalmente, ela é eleita por RuPaul entre as duas piores e precisa “dublar pela vida”. É aqui que a mágica acontece e uma boa lição nos é mostrada: não importa o quão envolto de lixo e bagunça você esteja em sua vida, se lhe sobrar apenas a dignidade, pegue ela e transforme teu momento:

A outra situação acontece também no primeiro episódio, no workroom. RuPaul pergunta para Latrice Royale: “quando pareceu o fim do mundo para você?”, em referência ao tema do episódio. Latrice responde: “você quer mesmo saber? Bem… quando eu fui para a prisão. Eu cometi alguns erros idiotas e fiquei 18 meses no buraco. Durante este período, minha mãe faleceu. Foram meus piores medos se tornando realidade. Eu nem pude ir ao funeral da minha mãe. Foi a experiência mais degradante da minha vida. Mas eu sou um sobrevivente, um lutador. Eu tinha um plano quando saí e minha comunidade veio me socorrer. Eles fizeram uma campanha ‘Latrice Royale de pé no palco’. E funcionou!”. Ela é, de longe, uma das drags mais carismáticas da história do programa e com a fala doce num corpão robusto, alto, torna tudo mais interessante.

Uma fala dela que ficou bastante famosa é: eu quero que as pessoas entendam que tudo bem cometer erros, tudo bem desmoronar. Levante, pareça estonteante e faça eles comerem isso!

5ª temporada

Nesta temporada, voltamos a ser adolescentes num daqueles filmes de Sessão da Tarde. O enredo não podia ser melhor: temos um freak com narcolepsia perseguido por um trio de vilãs, no melhor estilo populares da escola, que se autodenominam Rolaskatox (junção dos três nomes). Jinkx Monsoon, a freak, se apaixona por outro competidor, mas não fala nada para o crush e chora quando este é eliminado.

Em um ponto alto da temporada, vemos a maior vilã entre o trio, Roxxy Andrews, que deliberadamente pratica bullying excessivo contra Jinkx, levar todo mundo as lágrimas ao contar, na passarela, quando vai mal numa prova e cai no choro: “não me sentir querida e boa o suficiente, me atingiu. Eu sinto que minha mãe nunca me quis e… minha mãe abandonou minha irmã e eu num ponto de ônibus, quando eu tinha três anos. Me lembro como se fosse ontem. Eu fico querendo parecer forte e tento continuar forte, mas sou fraca e estou tão cansada!”.

E arranca de RuPaul:

“Nós te amamos e você será sempre bem-vinda aqui. Quem é gay, pode escolher sua família. Escolhemos quem faz parte de nossa vida. Eu sou sua família. Aqui nós somos uma família. Eu te amo.”

6ª temporada

Considerada a melhor temporada de todos os tempos por muitos fãs.

Nesta temporada, é bem possível que você pegue antipatia por Trinity K Bonet, que vai tão mal nas provas, mas tão excepcionalmente bem nos lip sync. E quando você já desistiu dela, RuPaul insiste em mantê-la.

RuPaul frequentemente pressiona ela para que ela saia da concha. RuPaul acredita nela quando ninguém mais, inclusive ela, acredita. Quando a ruptura finalmente acontece e ela vai muito bem em uma prova que tinha tudo para ela se dar mal, RuPaul vai as lágrimas e a gente, putinhas da edição, nos entregamos junto. Mas é bonito de ver.

7ª temporada

Muito possivelmente, a temporada mais cara até então. As provas são muito elaboradas, tem cenários diferentes. Mas algo aconteceu entre as escolhas da edição com as escolhas das eliminações feitas por RuPaul, pois esta temporada te leva a crer que até mesmo RuPaul pode errar, errar feio, errar rude.

O que fica desta temporada é a sensação de uma temporada de transição. Ocorre nela também uma divisão por idade entre as participantes, as queens mais velhas se juntam para criticar e competir contra as queens mais novas. Nesta temporada, a arte dragqueen definitivamente está no mainstream e para as queens mais velhas é difícil aceitar a entrada em massa das queens mais jovens nesta atividade que antes era marginal e hoje é cool. Mas, infelizmente, esta temática é mais explorada no Untucked do que na edição oficial.

8ª temporada

A temporada que volta as raízes. Temporada onde acontece o centésimo episódio, é também uma temporada que tem um aspecto mais pobrinho, voltando realmente ao início.

Neste tema raiz, nós temos a oportunidade de ver mais um sonho se transformar em realidade. Chi Chi Devayne é uma queen raçuda. Ela conta que é bastante pobre, que está no programa – principalmente – para ganhar o prêmio em dinheiro, pois está literalmente falida. Tem vários empregos, basicamente para pagar empréstimos e não consegue viver de drag.

Ela é uma performer incrível e faz um dos lip sync mais emocionantes da história do programa (da música: And I am telling you I’m not going, na voz de Jennifer Hudson). Bem, quem conhece o filme Dremgirls, sabe que a música, por si só, já tem uma carga dramática foda e Chi Chi consegue transportar isso para a dublagem.

Depois de tudo isso, é muito gratificante descobrir que, hoje, ela vive exclusivamente daquilo que sabe fazer tão maravilhosamente bem, que é viver da arte drag.

Dia 24, começa a 9ª temporada nos EUA. E, no primeiro episódio, terá a participação de Lady Gaga.

Nas festas de divulgação promovidas, sempre transmitem os 20 primeiros minutos do primeiro episódio, onde é possível ver a entrada das novas competidoras. E Lady Gaga entra como se fosse uma participante.

Ao ser “descoberta” como a verdadeira Lady Gaga, a queen Eureka, aos prantos, conta que, num momento em que pensou em desistir realmente da vida, a Lady Gaga (através de sua música e carreira) a salvou.

É, parece que drama não será problema para esta nova temporada que vem aí. Mas reforço que: o que contei aqui foi apenas uma forma de se olhar o programa, entre as queens que citei, inclusive, apenas duas são as vencedoras da edição que participaram. Além do drama, você terá muitos momentos engraçados, uma competição feroz, brigas, alianças, tudo que é interessante em um show que retrata a complexidade da raça humana.

Quem se interessar por assistir a nona temporada, recomendo a página All RuPaul no Facebook, que sempre disponibiliza os episódios – com legendas – no dia seguinte da exibição lá fora. Quem se interessar pela arte drag em geral, recomendo a mesma página, pois eles fazem um trabalho muito competente e sempre trazem informações, das mais variadas, em relação a este universo.

Bora?