Crônica

Sobre a perda e sobre o silêncio

servido por: Bethânia Morico

Eu tinha uns três anos quando fui a um velório pela primeira vez. Lembro-me de ficar sentada ao lado da minha prima, um ano mais velha, que também não entendia muito bem o que era morrer. Mas a tristeza contagia. Choramos um choro desconhecido, até desmotivado. Eu tinha nove anos e já sabia o que era morrer, quando – no segundo velório – perguntei à mãe se o buraco no teto, logo acima do corpo frio, servia para a alma ir embora. Dois anos mais tarde, a dor era insuportável quando o tio-avô, que me fazia brinquedos com latas e madeira, se foi de repente depois de um AVC. Um ano depois, vi um câncer matar devagar outro tio-avô. Dia após dia, uma senhora vestida de preto sugava um pouco da saúde dele. Eu tinha 12 anos e atendi ao telefonema do hospital, que informaria, segundos depois, a perda para minha mãe. O tempo passou e vi primos morrerem jovens, tios perderem lutas contra doenças severas, amigos indo embora sem dizer adeus.

E pouco a pouco, a morte – essa senhora da minha visão de criança – continua vagando com vestes pretas, levando parentes, amores e amigos. Perder dói. Perder causa revolta, porque sabemos que é um caminho sem volta.

Da tristeza à aceitação, leva tempo. A saudade não escolhe prazo. O luto não pode ser ignorado, mas enfrentado com tudo o que ele tem direito. Choro, arrependimentos, risos descontrolados quando as boas lembranças surgirem. Agora, digo adeus a um amigo que me apoiou quando mais precisei, sem julgamentos, sem acusações.

Gostaria de ter tido a oportunidade de dizer isso a ele, ainda em vida. Não tive e por isso a dor parece ser ainda maior.

Para alguns, eu falei demais. Para outros, silenciei. Negligenciei a amizade, dei voz ao amargor. Fui errada, quando era só para ser errante. Eu pequei o maior dos pecados e me calei quando deveria dizer ao amigo o quanto ele era – e é – importante em minha ainda breve história.

A saudade é sem vergonha… te faz chorar no meio de gente, rir do nada – enquanto eu caminho sozinha pela rua. Menina danada! No fundo, não sabe o poder que tem. A saudade é sem vergonha porque te põe bem no meio desses dias nublados. Na hora da perda, o abraço não dado, a mágoa não superada e a dor enraizada são as mais cruéis das companhias. E não há canção ou poesia que alivie uma alma abatida.

Em minha trincheira solitária, hoje, brindo à covardia do silêncio, do medo de ser mal interpretada, dos gritos que me repelem a presença. Hoje, no escuro de um quarto choroso, brindo às amizades desfeitas pelo rancor, pela morte que não escolhe dia. Brindo aos amores enrusgados, aos desafetos e ao ódio. Todos aí listados só têm a ganhar nesses dias nublados. Mas saibam, porém, que as almas e os corações partidos hão de aquietar-se. Vai levar tempo. Vai doer. Mas a vida, que apronta, também acalenta.

Quilião, meu amigo bagual, obrigada por ser sensível o suficiente para enxergar o que havia de bom em mim. Num período de escuridão, você encontrou, como sempre, um ângulo diferente do daqueles que só sabem olhar a Vida e o Outro por uma mesma perspectiva. Você mora no meu coração e me salvou, mesmo sem saber.

“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito abatido.” (Salmos 34:18)